Por Flavinho
"Estava agora viajando
lá na bancada, bebendo uma" Papava",
conversando comigo
mesmo e com meus balões quando um pedaço de papel me chamou
atenção. Era uma esboço de um balão que tinha feito há bastante
tempo e esse papel estava rolando na bancada. Antes de amassar e
jogar no lixo resolvi ver o que estava no verso. Era um texto de Carlos
Heitor Cony...
Leiam:
Simplemente
sensacional.
É ai que vemos como é
fácil manipular 190 milhões de ignorantes contra poucos
esclarecidos.
Nunca vão dar educação
ao povo brasileiro.
Aqui é a política do
pão e circo".
Academia Brasileira de
Letras
Artigos
Noites de junho, noites
de outrora
Carlos Heitor Cony
Todos dormiam, menos
eu, vigiando o céu, esperando que um balão viesse a cair.
JUNHO ACABOU e eu nem
sofri com isso. Sei que em alguns lugares as festas ainda teimam em
sobreviver, mais por vício de calendário e pesquisa mercadológica
do que por necessidade.
Considero obscena a
decoração que as lojas comerciais promovem em nome de uma tradição
que não mais existe, as bandeirinhas de papel fino, os balões
armados com arame e plástico, as fogueiras de mentirinha, movidas a
ventilador. No adro de algumas igrejas, também há movimento, mas
sem empolgação, o lucro das barraquinhas mudará as telhas
quebradas dos templos, alguns deles aos pedaços.
Não sei como as coisas
se passam em outros sítios. Aqui, no Rio, é uma calamidade. Os
jardins de infância faturam por fora em nome dos santos juninos, e
os pais são obrigados a gastar os tubos com fantasias caipiras que
as crianças acabam vestindo sem entender e sem amar. Até o
presidente da República bota na cabeça um chapéu de palha em
frangalhos e convida os ministros para um quentão oficial geralmente
substituído por um uísque de 12 anos.
Da antiga e bonita
tradição das festas de Santo Antônio e São João não sobrou
nada, apenas a referência no calendário e a advertência anual das
autoridades a respeito de balões e fogos.
Pois foi por aí que a
festa acabou. Reconheço os motivos que obrigaram o governo, em seus
diferentes níveis, a proibir balões. Mas que diabo, na minha
infância, o céu ficava "pintadinho de balão" -como
lembra a marchinha junina de Assis Valente. As casas eram mais
frágeis, mais espaçadas, havia matagais em abundância na paisagem
e mesmo assim os incêndios eram poucos.
Que me lembre, nunca vi
incêndio provocado por balão, embora meu pai, nos anos de minha
infância, fosse famoso baloeiro entre os baloeiros mais famosos. Foi
talvez a única arte em que se distinguiu -nas demais foi um
desastre.
Os preparativos
começavam no início de maio, resmas de papel fino sueco -era o
melhor e o mais resistente, de cores mais cintilantes e duradouras.
Os balões se amontoavam pelas salas e quartos, pendurados em varas,
em ganchos, em cima dos armários, deles saía um cheiro da cola de
farinha de trigo e do papel importado. Ali eles aguardavam a noite
mágica em que subiriam ao céu.
Murchos, coloridos e
disformes, pareciam monstruosas fantasias de palhaços, sem alma, sem
chama, à espera do momento em que entrariam em cena, no imenso
espaço da noite de junho.
Mas dia 13 (Santo
Antonio) ou dia 24 (São João), eles se erguiam, iluminados, varando
o espaço majestosamente, enquanto aqui embaixo ficávamos, ao redor
da fogueira, olhando atônitos aquela beleza que subia, frágil e
poderosa. Eram enormes os balões, e belos.
Lá distante, da sala
onde funcionava a primeira radiovitrola que meu pai comprara na Casa
Édison, provavelmente a prazo, vinha a marchinha de Assis Valente na
voz de Carlos Galhardo: "Cai, cai balão / não deixa o vento te
levar / quem sobe muito / cai depressa sem voar/ e a ventania / de
tua queda vai zombar / cai, cai balão / não deixa o vento te
levar".
Mas os ventos levavam
os balões e eles sumiam na imensa enseada da noite. Mais um pouco e
as fogueiras ficavam reduzidas a cinzas, onde se assavam batatas
doces e roletes de cana.
Enquanto isso, os
balões ainda voavam pela madrugada, silenciosos, as buchas apagadas.
Manuel Bandeira tem versos pungentes sobre os balões apagados das
madrugadas, no poema que foi o primeiro que entendi e amei.
("Profundamente").
Vivi a mesma
experiência: acordava no meio da noite e pensava em todos os que
estavam dormindo, profundamente, e de repente um balão apagado
passava em silêncio pela minha janela, vindo de longe, cansado, sem
glória, cumprindo o seu destino de balão. Todos estavam dormindo,
menos eu, vigiando o céu, esperando que um deles viesse a cair em
nosso quintal. Alvoroçado, acordava o pai e íamos juntos e
orgulhosos apanhar a dádiva que o céu nos mandara.
Pois é. As fogueiras
acabaram mesmo. As noites de junho eram as mais frias do ano. E as
festas também estão acabando. Mas não posso deixar de lembrar os
balões que nunca me libertaram de seu legado de tristeza, mansidão
e fragilidade.
Folha de S. Paulo,
17/7/2009
Humberto Pinto Cel
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